Urso da memória: uma experiência no luto materno
Falar de morte é também falar da vida, essa que segue após outras vidas serem interrompidas com seus planos e sonhos. Neste texto eu vou focar na morte e no luto vivido pelas mulheres que são mães.
Cada pessoa vive a dor do luto de forma única. Há dias melhores e dias piores. Então, uma mãe que perde seu filho, perde algo que faz parte de sua identidade também. Não ser mais conhecida como a mãe de alguém, mas como a pessoa que perdeu um filho é uma experiência que gera intenso sofrimento e que requer resiliência.
Preparando um tema para a reunião do G.A.M.S. Grupo de Apoio a Mães Saudosas de Bragança Paulista, São Paulo, no qual sou voluntária, encontrei algo especial: O projeto do Ursinho da memória. A responsável pelo projeto é a artesã Mary Macinnes que cria ursos de pelúcia a partir de peças de roupa de entes queridos falecidos.
Percebi que havia, neste feito, elementos que apontavam para uma experiência de valor terapêutico para o nosso grupo de apoio no luto materno. E para quem perde um ente querido, destinar seus objetos para algum fim, é desafiador.
É como se este membro da família ainda estivesse sendo esperado, como se fosse voltar para casa a qualquer momento. Entregar a peça escolhida para artesã não é uma tarefa fácil. Mas havia a expectativa de reviver a presença do filho perdido, nesta nova experiência com o objeto artesanal.
Então, a reorganização do tecido em forma de urso, simbolicamente, poderia ser percebida como reconstrução da presença de um filho que partiu.
O urso da memória e o luto materno
A artesã Franciele Cardoso do Ateliê Artes de Urso, em Atibaia, São Paulo aceitou o desafio de confeccionar os Ursinhos da Memória. Ela entendeu a responsabilidade de trabalhar com uma matéria-prima tão cheia de significado. E que, juntar tecidos, também é construir novas experiências emocionais significativas para essas mães saudosas.
Então, ao encomendar um Urso da memória para uma artesã, a mãe passa por um processo ativo de construção de significado diante do luto. Um processo de ressignificação de uma peça de roupa que pertenceu a quem partiu, que esteve em contato com aquele corpo que não existe mais.
Etapas para a construção do Urso da memória
Abaixo, cito 4 etapas, não muito prazerosas, que as mães passam para construir o Urso da memória.
- Refletir sobre a sensação que este objeto pode proporcionar;
- Vivenciar emoções e memórias presentes na escolha da peça;
- Decidir pela aquisição deste objeto artesanal.;
- Criar expectativa e recuperação da vitalidade na espera pela chegada do Urso da memória.
Além disso, quando uma mãe recebe o urso é como se estivesse abraçando seu filho novamente, como há muito tempo não fazia e sentia.
Ou seja, receber a peça artesanal Urso da memória, traz em si o sorrir espontâneo da felicidade dentro da dor. Sendo comparado a encontrar-se com o filho dentro dos limites da saudade. Uma experiência relatada como “maravilhosa” e “indescritível”.
Além disso, mães que compartilham da experiência com o Urso da memória relatam momentos de expressão de emoção únicos. Então, poder abraçar este urso promove emoções positivas. Essa experiência dá a chance de uma reconexão com o filho falecido.
O simbolismo do Urso da memória no luto
O urso simboliza a criança que, para a mãe, faz parte do universo infantil. Ainda que simbolicamente, se estabelece uma nova relação com a pessoa desaparecida, uma forma de homenagem que traz a sensação da presença.
Nisso, podemos entender que este objeto pode trazer a percepção subjetiva de recuperação da presença. Este Urso da memória, começa a fazer parte do dia a dia da família, trazendo oportunidade de um abraço, quando a saudade se fizer presente, então carinhosamente, essas mulheres começam a chamar o Urso da memória, de Ursinho do abraço.
Visualizar uma mãe saudosa com seu Urso da memória, exercitando a gratidão pela vida vivida com seu filho e acolhendo a saudade de forma amorosa, é perceber que há um agir intencional para o desenvolvimento de um luto saudável.
Há uma intencionalidade no exercício da força do humor, no sorriso que é expresso no contato com uma peça artesanal tão especial e cheia de significado como o urso da memória. O humor não nega a dor, mas também não nega a felicidade, mesmo na ausência que é constante e desleal com quem fica.
Além disso, existe também intencionalidade no exercício da força de autoregulação, quando se escolhe resignificar a perda com uma nova experiência de presença, dentro do contexto da separação física
A morte é parte da vida, mas a morte de um filho não é um processo natural. Esperamos ver o desenvolvimento em cada etapa da vida de um filho, desde a mais tenra idade, até sua vida adulta… nunca a morte. O luto como Evento de Vida adverso, vem de encontro ao processo de bem-estar.
Além disso, a perda de um filho é uma dolorosa experiência de vida. E muitas mulheres chegam a comparar o luto com a perda da própria vida.
Superando a dor do luto
Reencontrar-se com suas virtudes e forças pessoais para seguir vivendo é uma experiência de transformação. A bravura é frequentemente exercitada no enfrentamento da dor, assim como a espiritualidade que pode trazer o conforto, de acordo com a percepção da vida. As forças pessoais precisam ser exercitadas, trazendo contribuições significativas na experiência do luto materno.
No exercício das forças pessoais, a vida vai recuperando o sentido. Algumas vezes, há dificuldade em entender que, apesar da perda, as mães sempre terão guardado na memória tudo o que viveram no passado com seus filhos. Mas, mesmo com um filho falecido, a dor da ausência física é tão grande que muitas mães não conseguem sentir que ainda são mães.
Além disso, é possível perceber que há indícios de um efeito terapêutico na presença do Urso da memória quando a saudade é acolhida com a força da gratidão pela vida vivida pelo filho e ali representada. A memória do filho falecido será celebrada na calma que um objeto artesanal lúdico, pode trazer ao sofrimento.
Ser mãe, na ausência
A sensação de ser mãe está irrevogavelmente guardada, nada está irremediavelmente perdido, como citado no livro Em busca de sentido, por Victor Frankl (2009). O cuidado e a forma de relacionamento com o filho, não serão mais vividos da mesma forma.
A ligação com este filho é mantida através da transformação da realidade e das lembranças da presença. Ter de lidar com a ausência do filho, exigirá que a mãe entre em contato com suas potencialidades.
Então, para viver o bem-estar após o luto materno é necessário descobrir e desenvolver as forças e virtudes, próprios do ser humano.
Citando ainda Viktor Frankl (2009 p.77):
Não devemos esquecer nunca que também podemos encontrar sentido na vida, quando nos confrontamos com uma situação sem esperança, quando enfrentamos uma fatalidade que não pode ser mudada.
Escolhendo exercitar suas potencialidades
Uma mãe não pode mudar o passado, não pode trazer o filho de volta para a vida, mas pode escolher como seguirá em frente. Como? Usando suas potencialidades, ou se entregando à tristeza e depressão.
Sempre vai ter um dia triste como aniversário, natal ou virada do ano. Mas também existirão dias felizes em que essa mulher conseguirá exercitar suas forças aumentando a sensação de bem-estar.
Atitude ativa
Por isso, no luto materno, entendemos uma atitude ativa por:
- Emoções positivas;
- Engajamento;
- Sentido;
- Relacionamento positivo;
- Realização, como um bom caminho para a restauração da sensação de bem-estar.
A vida tem momentos de extrema dificuldade, como o enfrentamento do luto, não só no contexto materno, como familiar e entre amigos. Utilizando as forças de caráter, será possível enfrentar o sofrimento, com mais recursos.
Por isso, acalmar a dor da perda com atividades que proporcionem sensação de aumento do bem-estar devem estar disponíveis para todos. O sofrimento pode ser amenizado com o exercício das forças pessoais.
Então, refletir sobre as contribuições da Psicologia Positiva e no uso das forças para o desenvolvimento do sentido da vida diante da morte é destacar elementos chave neste momento de pandemia, em que vivemos um luto coletivo, diante da COVID-19.
Por fim, as pessoas estão adoecendo, ansiosas, impactadas com a realidade e distantes do conhecimento que transforma a percepção da realidade. Então, concentrar a atenção nas suas potencialidades e exercitá-las pode proteger a saúde mental, de nossa sociedade.
Eu posso te ajudar
Eu posso te ajudar a entender os seus seus sentimentos e emoções. Você pode conversar comigo sobre desmotivação profissional, ansiedade, estresse, morte e luto, mudança de estilo de vida. Vem comigo nessa jornada rumo ao autoconhecimento.
É Psicóloga Clínica, pós graduanda em Psicologia Positiva pela PUC- RS. Especialista em Psicopedagogia pela UMESP, atua como palestrante na área de educação, saúde emocional e família. Como psicóloga voluntária participa do Projeto Ouvido Amigo em São Paulo e do G.A.M.S. Grupo de Apoio a Mães Saudosas, em Bragança Paulista, SP. CRP: 06/65897
Parabéns Katia pelo excelente trabalho que desenvolve.
Minha vó paterna perdeu três filhas quando elas tinham menos de um ano (eram de diferentes gestações), depois um filho de 5 anos, mas o que teve a dimensão maior foi a morte do meu pai, aos 40 anos e deixando oito filhos menores de 15 anos. Num almoço que ela esteve conosco, já adultos, ela disse que “faltou coragem” para nos visitar, sabendo que o filho não iria estar. Agradeceu minha mãe por ter dado continuidade a nossa criação com tanta dedicação! Mas sempre lembro que há filhos que perderam mães e são crianças, havendo creches lar: une modelo de orfanato, mas o dia todo conta com mães que dão a rotina de uma família, não ouvem a expressão tia, comum nas creches, mas mãe, onde muitas delas não ouvem mais de filhos biológicos, em virtude do óbito!;