Precisamos falar sobre aborto e o que aconteceu na Argentina
Você não precisa ser contra ou a favor do aborto para ler esse artigo. Nem tenho pretensão de convencê-la (lo) sobre as minhas opiniões pessoais. Aqui, iremos livremente conversar sobre a questão de saúde pública que o aborto representa para as mulheres, o quanto isso pode interferir em sua jornada na vida pelo bem-estar emocional e qual a leitura que podemos fazer das milhares de mulheres argentinas que foram às ruas na última semana lutar pela legalização do aborto. E elas conseguiram uma grande vitória.
É ilegal. É imoral.
No Brasil a prática do aborto é considerada ilegal, exceto para mulheres com gravidez por motivações de estupro, com riscos à sua própria vida ou se for comprovado que o feto é anencéfalo, ou seja, com cérebro subdesenvolvido e sem a calota craniana. Essas exceções passaram a ser consideradas, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), apenas em 2012.
Ou seja, para esses casos considerados exceção, a mulher tem direito a um atendimento digno, saudável e livre de julgamentos pela sociedade – patriarcal, diga-se de passagem. Os demais casos, você já sabe bem como acontece.
Dados que todo artigo deve ter
Como todo bom artigo sobre temas que dividem a opinião pública, aqui estão os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) que registra os fatos sobre o aborto no Brasil.
O aborto feito de forma clandestina é responsável pelo quinto lugar nas mortes maternas no Brasil, onde cerca de 1 milhão de abortos são feitos por ano. Os números só pioram e se aproximam da realidade, quando descobrimos que a cada dois dias, uma mulher morre em decorrência desse ato.
Além disso, 31% dos casos de gravidez no Brasil, em mulheres de 15 a 49 anos, terminam em aborto, ou seja, quase três em cada dez mulheres grávidas, abortam. (Falamos aqui sobre depressão na gravidez)
Quem está morrendo?
Provavelmente você conhece alguma mulher que já tenha feito aborto. Ela pode até não ter te contado, por ser um assunto, que eu chamo de clandestino, mas fez. Ela é uma sobrevivente e provavelmente faz parte de uma classe social mais privilegiada, que pode desembolsar em torno de R$ 4 mil, para pagar uma clínica “que-faz-mas-não-faz-aborto”, se é que você me entende.
Aquelas outras, desprivilegiadas financeiramente, em sua maioria, negras, se submetem a um sistema precário de atendimento e em condições insalubres. E é isso mesmo que você pensou, são essas mesmas que compõem o maior número de mortes que citamos acima e sim, é uma questão socioeconômica também.
Assunto clandestino
Mas porque esse assunto é clandestino? Podemos falar em duas frentes para responder essa questão. A primeira, é curta e grossa, já que se trata de uma atividade ilegal com regras registradas em nosso código penal, em que gestantes que realizam aborto podem ser condenadas de um a três anos de cadeia. (eu queria perguntar aqui o que acontece com o pai do feto em questão, mas acho que podemos fazer esse textão em outro momento)
A segunda, e não menos importante, é sobre a agressão moral, psicológica e até mesmo física que mulheres que assumem seus abortos sofrem da sociedade, e até de amigos e familiares. É um assunto tabu na mesa de jantar, é motivo de comentários maldosos entre os conhecidos, e até de repreensão e solidão entre casais – nem sempre os homens ficam ao lado de suas parceiras nessa decisão, não que isso seja uma novidade para vocês.
Se você tem por hábito agredir mulheres por essa decisão que vai contra os seus princípios, você não está contribuindo para a redução dos números de aborto, nem de morte de mulheres no Brasil e no mundo. E se você ainda acredita que o aborto significa uma questão de vida ou morte de um feto, lembre-se que também se trata da vida ou morte de uma mulher.
A psicologia como apoio ao aborto
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) se posicionou em 2012, sobre a decisão do STF, que já comentamos, e declarou que “O CFP luta pela promoção da saúde da mulher, tanto física quanto mental, e pelo reconhecimento e integração dos diversos momentos e vivências na subjetividade da mulher, entre eles a decisão de ter filhos. Defendemos, sobretudo, o acolhimento e escuta para as mulheres em situação de aborto!”
Sabe o que isso quer dizer, mulher? Mesmo que tudo pareça tão confuso e insatisfatório, antes, durante ou depois da sua decisão em abortar, que você não veja saída para pedir ajuda entre seus entes, há profissionais e especialistas capacitados para te ouvir e te acolher. Você não está sozinha. Nem você nem essas milhares de mulheres que ainda irão abortar só esse ano.
Use camisinha!
Sim, use. Usar anticoncepcional? Sim, use. Só engravida quem quer? Não.
Acredite, a informação e a referência sobre utilização correta e possibilidades de métodos contraceptivos não chega de maneira tão fácil a todos, como deve ter chegado para você. Como é bem sabida, a educação no Brasil é outro problema social, que podemos discutir profundamente em outro artigo, e ela contribui drasticamente para diversos outros números sociais, como violência e esse que está em questão, por exemplo. Acho que só de lembrar a você sobre esse fato, não há necessidade de um parágrafo ainda maior.
#Abortolegalya
Com essa hashtag nas redes socais e com mais de um milhão de pessoas, sobretudo mulheres, às ruas, a Argentina aprovou na Câmara dos Deputados a favor da legalização do aborto no país. Essa é apenas uma etapa – o projeto ainda irá para votação no Senado Federal – mas, o que nos motiva a conversar sobre isso por aqui, é a coragem e a união das Argentinas – (os) eles também – sobre o assunto.
Ao que parece é que quando há informação e a possibilidade de luta por melhores condições para a vida das mulheres, o assunto deixa de ser um tabu, deixa de ser clandestino. São ações assim que me motiva – e deve te motivar também, caso você acredite nesta causa – a afirmar que precisamos falar sobre aborto.
Quero lembrar também o recente acontecimento na Irlanda, país de maioria católica, em maio deste ano, que em referendo popular teve o expressivo resultado pelo “sim” (66%) pela legalização do aborto no país. E assim se caminha a humanidade.
Cada uma que cuide do seu útero
Se você leu até aqui e continua achando um absurdo o tema do aborto ser levado para algo a ser considerado, ok, não faça aborto se você engravidar. Esse é o seu direito como mulher, afinal de contas, “meu corpo, minhas regras” também vale para você. Ou, se você acredita que por conta da sua fé religiosa essa atitude seria impensável, afinal feto é um bebê e se foi concebido deve vir ao mundo, ok também. Sua fé, suas regras.
Isso vale para você amigo, homem, que não pode engravidar, por razões da natureza. Mas não use o seu direito de fala para julgar o que outra mulher faz com o seu próprio útero, seu corpo e sua vida, como falamos, você não está contribuindo em nada.
E não se esqueça, ser a favor da legalização não implica que você seja a favor do aborto e nem que as mulheres precisem abortar. A legalização apenas dará às mulheres que necessitam do procedimento, o direito da escolha com condições médicas ideais e que não coloquem a sua vida em risco.