No final da tarde daquela segunda-feira, o céu parecia ter sido pintado à mão: era um mármore azul desbotado em borrões de nuvens nuns tons que saíam do branco e  desaguavam em alaranjados e lilases. Minha sogra, no banco de trás do meu carro olhou  esse céu e murmurou, em voz baixa, resignada: “Que tarde triste, meu Deus.”

Sim, era uma tarde especialmente triste para ela, talvez uma das mais melancólicas que essa mulher tenha vivido: voltávamos de carro do enterro de seu filho mais velho, meu cunhado, que sofrera parada cardíaca na noite anterior. Uma mãe perdera um filho. A mãe que dera um ser humano à luz, acabava de retornar sua cria à terra, numa inversão da lógica a fragmentá-la em pedaços de angústia, incredulidade, não-aceitação. Era essa mãe, rodeada de cuidados, acompanhada por dezenas de familiares e amigos. Era, ainda assim, a imagem da solidão mais profunda que se pode sentir, na constatação da finitude.

Por mais que saibamos conscientemente que a morte é uma parte inseparável da vida, que o falecimento significa transformação, de uma forma geral nós não a aceitamos facilmente, nós a amaldiçoamos porque nos sentimos impotentes diante de suas imposições, principalmente porque reconhecemos, na perda de alguém, a falta, a saudade, sobretudo, uma experiência para a qual nascemos predestinados. Mas é justamente por essa imensa dificuldade que quase todos nós temos em admitir a morte que ela se faz tão assustadora.

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Há uma parábola zen budista que ilustra muito bem isso. Consta num dos Sutras que uma mãe chegou à casa de Buda com o filho morto nos braços, suplicando que ele o fizesse reviver. Cuidadoso com essa mãe, sobretudo com as suas esperanças, ele não lhe disse da impossibilidade de ressuscitar o menino. Buda pediu a essa mulher conseguisse alguns grãos de mostarda, colocando, porém, uma condição: para trazer o menino de volta à vida, esses grãos deveriam vir de uma residência onde nunca houvesse morrido ninguém. A mãe andou todo o vilarejo, bateu de porta em porta, sem encontrar uma  única casa sequer livre de perda.

Se não conforta, essa história ao menos nos diz algo óbvio desse momento em que o indizível se impõe, do sentimento de perda, da forma de sofrimento que palavra nenhuma aplaca: que a morte desorganiza e deprime, mas é comum a todos os viventes. O passo seguinte à melancolia, à dor da perda, é a elaboração do luto: a angústia se transforma em saudade, não menos dolorosa, mas diferente do choque inicial e com a qual conseguimos conviver, na idéia de que, mesmo com outro significado, a vida continua.   

Terapia é para quem quer se desenvolver

 Sobre a autora:
*Realiza consultas psicológicas por vídeo-chamada no Zenklub